Sorte de cão


por António de Montelongo (01/02/2006)

“Saiu-te a sorte grande!” - foi desta forma que o veterinário se referiu ao Tino após tê-lo tratado e ouvido a sua breve história relatada pelos novos donos. “Saiu-te a sorte grande, cão!”
Apesar do abandono e por causa do adandono, a alguns cães sai a sorte grande. A outros, a tantos outros, o que os espera é a morte provocada pelo abandono do ser em quem eles confiaram.
A ruptura com o ser que se amou é sempre vivida na dor, mesmo que imperceptível para os outros. Os outros, verdadeiramente, nunca percebem a dor que não é a sua. Só o próprio sofrimento é que é doloroso.
A história de Tino também começa na dor, em situação de ruptura, de abandono, num dia quente de Agosto. Foi no dia 15 que o deixaram numa mata junto à praia, mas como era jovem e com vida marcada pelo sofrimento, não lhe custou muito ficar aí, mais ou menos quieto, à espera de alguém. Eis que finalmente, ao fim da tarde, se apercebe que um casal se aproxima e traz um ser da sua espécie, e Tino salta de felicidade.
O casal, não querendo dar troco ao cão, tenta disfarçar que nada aconteceu, que nada viu, mas este, como se já conhecesse os veraneantes, não mais ousou afastar-se deles, e caminhou até perto do local onde o carro estava estacionado. Não chegou lá, pois que, inadvertidamente ou pelo menos inesperadamente, o cão foi brutalmente atropelado, ficando com fractura exposta numa pata dianteira. Um profundo e doloroso ganir do cão não moveu o inqualificável condutor que nada viu, nada quis ver.
Nessa noite não houve concerto como estava programado, não houve festa. Nessa noite o cão começou o longo tratamento médico. Saiu-te a sorte grande, cão!

É tudo uma questão de sorte! Isso foi coisa que não teve a cadelinha abandonada, nestes últimos dias de Janeiro, na mata fria e húmida da longínqua aldeia. Magríssima, faminta e com aspecto de nunca ter sido amada por ninguém, parece que, até hoje, só teve maus-tratos. Se fazemos coisas indescritíveis aos humanos, aos próprios familiares, como esperar que o não façamos aos animais!...
Uns enlatados resolveram-lhe o problema da fome naquele momento e depois? Que mais posso eu fazer do que saciar, de passagem, a fome do pobre ser? Tentar arranjar dono para ela? Levá-la ao canil? Alternativas muito difíceis. Trazê-la comigo, como será possível se já tenho quatro cães no andar? Sorte também teve a Guida, a última a ser adoptada, veio desta mata.
De regresso ao Porto, ao fim do dia, o jovem ser lá continuava no mesmo sítio. Se os cães adultos ficam desorientados e percorrem inquietos caminhos à procura de quem os abandonou, os mais jovens ficam parados no sítio do abandono, como que à espera. À espera de quê, na noite gélida e dia interminável?
“A sorte é para os cães!” dizem, mas sabemos que não é para todos. Que o diga a cadelinha que nas outras segundas-feiras rondava a casa de meus pais. Onde está que hoje não a vi? Temo bem que alguém a tenha “arrumado”. Tantas vezes, na passada segunda-feira, me procurou e eu, um pouco às escondidas para não ter problemas com os humanos, a alimentei. Hoje, a sua ausência inquietou-me. Era alguém que já conhecia, era tão meiga e simpática! Que será feito dela? Não ousei perguntar.
A relação entre pessoas, mesmo entre pai e filho, tem destas coisas: por vezes, sem sabermos bem porquê, parece-nos ser melhor nada dizer, nada perguntar. Por vezes não questionamos para não ficarmos com a certeza do que suspeitamos. Ora o único consolo (irónico consolo) é que a comida que tinha reservado para ela, será para a outra, a que está na mata. Já agora, não é verdade que certas ausências são dolorosas presenças? Coisas do afecto…
Após o tardio jantar, tomei, como de costume, o Tino pela trela e fomos dar uma volta, fomos visitar o Sem-Abrigo que pernoita ao fundo da rua. Hoje, apesar do muito frio, dorme profundamente. Após deixar algo junto dele, senti esta crua realidade: este homem tem vida de cão sem ninho, sem agasalhos, sem nada e o meu comportamento para com ele é apenas igual ao que tive para com o cachorro abandonado na mata fria e húmida. Que senti: revolta, impotência ou também cobardia!?
O Tino, que me acompanhou, tem outra sorte, ele que, enquanto escrevo estas coisas, está deitado aos pés da cama em ambiente aquecido. A sorte é para os cães, mas não para todos. Qual cão abandonado pelo seu dono, ser sem-abrigo não é uma escolha, é abandono! Colocadas em situação de marginalidade social, as pessoas não têm escolha, não têm acesso à liberdade. E ousa dizer-se que são marginais porque querem ser livres, que não se querem sujeitar às normas, às instituições…

E o sentido para a vida? Ora, ora, tantas vezes andamos inquietos à procura de um sentido para a vida e afigura-se-me que queremos uma espécie de revelação do mistério; sem esforço, sem preocupações queremos ter acesso a realidades que ou não existem ou nos são estruturalmente inacessíveis. Mas isso desorienta-nos, e pensamos, reflectimos, investigamos e é isso o que devemos fazer, mas sempre tolhidos pela limitação essencial da nossa natureza.
Um sentido para a vida! Será necessário andarmos inquietos com o sentido da vida, se ela é mais fruto de um qualquer acaso, de uma ínfima oportunidade entre milhões, que de uma decisão consciente? Uma questão de sorte.
Só por falta de um pouco de concentração não tomamos consciência da maravilha que é a vida. Inquietante é que neste mundo que se diz desenvolvido, perante o espanto de alguns, verifica-se a ganância e ostentação de vidas luxuosas e viciosas a conviverem lado a lado com uma intolerável desprotecção dos mais necessitados, os sem-abrigo! Definitivamente, a sorte…!

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