Coisas do Arco da Velha


por António de Montelongo (Pseudónimo)

Há dias, a vizinha do terceiro andar direito morreu. Nonagenária, solteira e sem filhos (se é que ter filhos é coisa para aqui chamada), passou os últimos tempos da vida num asilo, à espera da morte. Aí morreu tão solitariamente, por certo, como viveu.
Hoje, ao deitar, lembrei-me da velha senhora. Por motivos desagradáveis, tinha que ser por motivos desagradáveis! É que estão a ser distribuídos, sob orientação da do 3º esquerdo, os seus tarecos pela populaça da vizinhança: a gente pobre e preguiçosa das ilhas e alguns ucranianos que vivem por aí. Gente carenciada que vai servir-se dos parcos haveres da velha senhora, mas dela jamais se lembrará. Gente reles? Sei lá. Coitados, são gente pobre, preguiçosa e pouco instruída. Depois é o que se vê!
Gente reles são outros, os que são aquilo que são porque não permitiram ou não quiseram que tantos humanos fossem mais do que aquilo que a realidade lhes impõe. Gente reles é também todo o que nem sequer a si mesmo se ajuda, e apenas vive de execráveis oportunismos.

Esta cena dos haveres da idosa senhora trouxe-me à memória um silencioso e tímido professor meu. Era um homem só, que apenas tinha por companhia a sua piedade. Era um homem bom, e como a velha senhora viveu sem a companhia dos seus que não tinha e morreu semiabandonado por não ter quem o pudesse amar. Como a velha senhora, os seus bens - no caso, os seus livros - foram vendidos ao desbarato a alunos e outros que tais por um colega de profissão.
Não fiquei com livros do bom professor. Caso contrário, se tivesse escolhido algum livro da sua especializada biblioteca, teria, nesse momento, perdido, para sempre, algo de inexprimível. O respeito e consideração que o bom professor merecia impediram-me.

Foi há trinta anos, mas lembro-me quanto a morte do Dr Alexandrino me levou a repensar o sentido da minha vida. A vida tem que ter um sentido e este não pode ser só em função da morte. Tem que estar ao nosso alcance todos os dias. Viver só, viver sem laços afectivos como o bom professor foi coisa que então vi claramente impossível. O leilão dos livros do solitário mestre indignou-me e levou-me a reforçar a ideia de uma vida com sentido, só e sempre na relação. Estranho é que a relação é mais idealizada que realizada. Vive-se, por vezes, numa tremenda solidão junto do nosso filho ou do nosso octogenário pai.
Mas avancemos: a morte do meu bom professor tem algum paralelismo com a da velhinha do 3ª andar. Tudo o que de valor material um e outro tinham ou foi vendido ao desbarato ou dado a quem nunca conheceu nem amou. Compradores insensíveis que nunca tiveram pelo bom professor um momento de compaixão, gente estranha que nunca teve um momento de recordação pela velha senhora.
Na morte encontra-se o sem-sentido da vida breve e tantas vezes dramática, o sem-sentido de tantas vidas que apenas um ideal superior procura completar?

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