O Prazer de Ler Daniel Maia-Pinto Rodrigues; um poeta portuense

por Maria Helena Padrão

Daniel Maia-Pinto Rodrigues, nome incontornável nas Letras Portuguesas, nasceu no Porto em 1960. Publicou o seu primeiro livro Vento em 1983 e, desde então, tem dedicado a sua vida à escrita do texto literário, à poesia sobretudo, mas, já em 2004 publica um conto em co-autoria com Isabel Rio Novo O Diabo Tranquilo e tem, neste momento terminado, o seu primeiro romance: O Corredor Interior.
Malva 62 com o substituto de Poemas Breves é o livro que hoje nos convoca e nos reclama uma leitura.
O livro Malva 62 apresenta a seguinte estrutura uma estrutura circular, sendo que a circularidade é um motivo já largamente explorado nas andanças literárias.
No Posfácio, Manuel António Pina, afirma que este livro do Daniel “exige do leitor de poesia um desusado desprendimento ou, talvez melhor, desaprendimento “da maior parte da poesia que tenha lido…”
O ensaísta convida-nos, portanto, a entrar para este universo poético “despojados” de expectativas, considerando que assim, e somente assim, o leitor será capaz de se encontrar face a face com a “natureza do poético”, vidando “o que quer que o poético seja”.
Reconhece ainda Manuel António Pina, o carácter excepcional e que este resulta da singularidade “mas também, simultaneamente, do modo como essa singularidade, essa estranheza, transporta um emocionante e desconcertante reconhecimento do próprio poético”.
Eis o que está em jogo: a singularidade enquanto estranheza. O estranhamento diz Roland Barthes é um dos ingredientes do quid literário e no caso do Daniel ele está no próprio corpus do texto enquanto tecido de sons, enquanto âmbito conceptual, mas também, enquanto pré-texto.
Há, na estrutura sincopada do conteúdo, Parou à beira do Pomar (1) e Parou à beira do Pomar (2) uma visível preocupação do sujeito lírico. Fazer notar a presença do Pomar; a paisagem, a vida e o sujeito que deliberadamente parou à beira do pomar. No primeiro momento o sujeito lírico caminha ainda menino no fio de que é feito o continuum da existência: nasceu e foi menino: aí parou. Porque sim. Porque era o tempo em que:
“Pousavas os braços nos beirais
aquecidos pelas tardes de Março.
Tinhas sobretudo tempo
para olhar as borboletas.
Havia sobretudo espaço
para se estenderem as planícies.”
Malva 62: 13
A este tempo o poeta regressará: Depois de “Predicados do Intermédio” e de “Apontamentos do Cônsul von Troche”.
O poeta regressará para ser de novo menino; para aí permanecer voluntariamente: adulto já e contudo menino.
“Já recorri a palavras várias
a frases orais e escritas
recorri ao silêncio e à alegria
a não sei quantos passos em todas as direcções
e nada se alterou
nada excepto a idade.”
Malva 62: 97
Esta poesia, de total despojamento, aventura-se pelo limiar da inocência, convocando para o texto a evidência, mas também a intuição, feita de reminiscências de um mundo outro e contudo possível; convocando para o texto a flora, a luz, a cor, a fauna, o mito, a parábola bíblica e a parábola que, implícita, omissa, mas emergente na sociedade actual, aponta para a outra voz que da penumbra faz eco.
“Sou eu, minha querida
aquele que surge de esguelha nas estradas.
Exacto. O ginete tão feroz, da floresta.”
Malva 62: 48
O poeta coloca o leitor no plano do mistério e isto acontece logo no primeiro momento:
“Há um rio
ou um barco no rio
onde a luz é intensa
e de tanta luz nos olhos e água
com rigor se não sabe
se o barco vai vazio.”
Malva 62:
A disjuntiva ou é já a assumpção da indefinição; indefinição relativa ao objecto observado, mas há, existe qualquer coisa. Disso o poeta não duvida. Acrescenta, depois a falta de rigor; “com rigor se não sabe”, apesar da luz “intensa”, apesar de “tanta” luz “não se sabe”, não nos é permitido aceder ao conhecimento.
Para se transpor as contigências do meu, do teu, do nosso tempo ou espaço é necessário o meio. O médium, que o poeta possui, que o poeta conhece.
“É este o corrimão. Se me sentasse nele
desceria até à tua juventude.”
Malva 62:
E desce. Porque é o único que possui a chave: é este o corrimão. E transpõe o limiar, e avisa:
“Insistes em não compreender
ser eu aquele que pinta
a poeira no fim da luz.”
Malva 62:
São avisos deixados aparentemente ao acaso ao longo do texto; avisos que são indícios de uma vidência anunciada.
O poeta/visionário ou o visionário/poeta é capaz de ver o antes e o depois, é capaz de habitar o lá, o além e o aqui, é capaz de reencontrar numa época posterior à sua, alguém que pertence ao passado já gasto na consumação dos dias. No poema dedicado ao avô pode ler-se:
“Está nos seus amplos aposentos
abrindo a janela às borboletas
abrindo a porta da varanda
à luz posterior da minha época.”
Malva 62:
A janela, a porta, a varanda, a luz são elementos disseminados no texto convidativo da travessia. São a chave para aceder ao conhecimento.
Pousemos agora o olhar na segunda parte:
Predicados do Intermédio. Afinal? O que é o intermédio? Na sua composição está, ainda mais acentuadamente pela sua maior proximidade do éfimo, a ideia de meio, de médium, agora assessorada pelo prefixo inter que estabelece ainda mais fortemente a ideia da passagem.
Sem preconceitos, avancemos, então no discurso e o que encontramos? A visão aparentemente trivial do que é trivial:
“Ela trincou o rissol
e não olhou para o interior.
Fiquei a gostar dela por causa disso.”
Malva 62:
Poder-se-á ver aqui uma provocação? Então o conhecimento do que existe e está oculto não é para todos? É talvez preferível andar ao rés da vida?
Ouçamos a voz do poeta:
“Não queiram entender
as vítimas do nosso tempo.”
Malva 62:
Há algo de profético nestes versos. Este tom profético podemos consubstanciá-lo nas palavras do poeta em entrevista magistralmente conduzida por Filipa Leal para O suplemento de O Primeiro de Janeiro Das Artes e das Letras de 26 de Setembro de 2005 onde o poeta afirma:
“Sei que estou numa linha de consumação dos dias. Tenho a minha existência completamente apensa a essa consciência (…) É o que procuro na vida: que não aconteçam no meu tempo de existência, muitas modificações.”
A terceira parte intitula-se:
Apontamentos do Cônsul von Troche
Assim, sem mais! O vocábulo “Apontamentos” remete para algo sobre que ainda não se deu a versão final. É talvez o pré-plano do texto; a versão não definitiva do texto, como aliás se verifica pelo abandono deliberado do poeta, desta forma de existência, para a assumpção voluntária da infância que deixara em parou à beira do pomar. Quem é então o Cônsul von Troche que o poeta irá abandonar no caminho?
Cônsul von Troche. Provavelmente este dizer deutsche não é mais do que a máscara que encobre a realidade. Troche (alemão) - Troche (português) - Trouxa, encobrirá o outro que o poeta conhece que o habita também, que ele assumiu ou assume, quando lhe convém. Este outro não chega a existir, tem apenas uma pré-existência, é um apontamento, mas é com ele que estabelece a partilha entre o sério e não-sério, entre o real e o des-real.
Na qualidade de von Troche, traz para o texto: o trivial, o absurdo, o desconcerto, o grotesco. Mas também, e sobretudo, o humor. Um humor desconcertante capaz de provocar o sorriso e o riso.
A própria manta sonora e gráfica participam deste humor desconcertante quando o poeta altera deliberadamente a grafia, mantendo os fonemas. Os poemas Proximamente e Procimamente (Director's cut) são disso exemplo pois há um jogo fonémico entre ex/eis [eis] escrito com x/ch [s], x/z [z].
“Às meninas vou pois eisplicar
o que fez a brucha da mata:
exigiu ao boi que comesse a rata
ou sorveria todo o oquecigénio do ar.”
Malva 62:
Será inocente este jogo fonémico?
Nada, na poesia de Daniel é fruto do acaso. Esta dualidade aponta para uma certa pedagogia de leitura, mas também de vida.
O leitor, não deve ser um leitor descomprometido mas cúmplice. É na cumplicidade que o poeta abre o jogo e introduz o leitor na aprendizagem da duplicidade da vida: luz/contra luz.
O poeta prepara o leitor para a aceitação das evidências e assim, já preparado o leitor pode aceder ao conhecimento, ao desvelamento.
Parou à beira do Pomar (2), a última parte do livro que não é mais do que a primeira sincopada, é o momento das máximas, de provérbios, é uma espécie de Livro da Sabedoria, uma voz milenar, mais dos deuses do que do povo, assente em frases lapidadas como:

das máximas, de provérbios, é uma espécie de Livro da Sabedoria, uma voz milenar, mais dos deuses do que do povo, assente em frases lapidadas como:
“Olhamos os filhos enquanto são crianças
e não quando são velhos.”
Malva 62:
Quanto dura o enquanto? Os filhos, será que envelhecem? O que é, para os pais, um filho ser velho?
O poeta disseca o feixe de relações entre
pessoa - pessoa
pessoa - objecto
objecto - pessoa
objecto - pessoa pessoa.
Repare-se no texto:
“O urso grande de peluche
que dei ao meu filho
está cada vez mais pequeno.”
Malva 62:
O que é ser pequeno? Com que olhos se olha o urso de peluche quando o filho cresce?
Que se passa nestes actos do destino?
E o poeta, conhecedor de ventos, não sabe as palavras, sabe, intui o que é indizível:
“Como te hei-de fazer ver
as meias distâncias
que nos separam das coisas?”
Malva 62:
Que estranha forma tem o Daniel de falar da irreversibilidade do tempo, tão diferente dos clássicos!
A chave, creio eu, para aceder à poesia de Daniel Maia-Pinto Rodrigues é a de aceitar que se está no limiar de uma nova poesia, pela versatilidade da linguagem e do conteúdo, pela forma do texto, pela capacidade de vidência através do verbo, pela sonoridade e pelo ritmo, mas também por uma curiosa simbolização do mundo que assenta na dúvida gnoseológica e numa questionação insistente da condição do homem, mas também da própria poesia.
Daniel:
“Tu és o bonito príncipe de ti.”

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