D. Francisco Manuel de Melo nos trâmites do universo feminino
por Gracinda Proença Paulino
A propósito do Dia Internacional da Mulher.
Para melhor ajuizarmos sobre a condição da Mulher no presente...
Ou será que ainda se justifica que haja um dia especial dedicado à Mulher? É assunto a debater!
“CARTA DE GUIA DE CASADOS”
Para que pello caminho da
prudencia se acerte
com a Casa do
descanso.
A HUM AMIGO.
por D. Francisco Manuel, Lisboa
Na oficina de Paulo Craesbeek, 1651
O autor, D. Francisco Manuel de Melo, nobre de condição, pretendeu ser útil à sociedade, sobretudo ao género masculino, e sobretudo aos candidatos a marido, dando-lhes a conhecer as mulheres, a fim de estarem precavidos contra os inúmeros defeitos das mesmas.
Devemos estar muito gratos, eu pelo menos estou, a D. Francisco Manuel de Melo, por se ter dado ao trabalho de escrever este manual de preceitos para garantir um casamento de sucesso. Melhor, para precaver o Homem contra os muitos males que a Mulher lhe pode causar. Passo a explicar porque afirmei que lhe devemos agradecer. É que, sem a sua obra, não teríamos um acervo documental tão completo sobre a condição feminina, neste caso, para o século XVII. Foi com documentos como este que os historiadores reconstruíram a penosa e longa caminhada do género feminino até à actualidade, ou não fossem as mentalidades pertença das estruturas que amarram as sociedades, fazendo-as resistir heroicamente à mudança. É na luta entre a permanência e a ruptura que a História se desenha. É através do conhecimento do “como foi” que as mulheres
podem avaliar e repensar, o que é Ser Mulher Hoje.
Passo a destacar algumas frases da obra:
Deus me guarde de mula que faz him e da mulher que sabe latim;
Do homem a praça, da mulher a casa;
Nos cuidados e empregos dos homens não se metam as mulheres;
Sofra o marido à mulher tudo, senão ofensa, e a mulher ao marido ofensa e tudo;
As mulheres são como pedras preciosas cujo valor cresce, ou mingua, segundo a estimação que delas fazemos;
Parece o dinheiro em mãos de mulher arma imprópria;
Mulheres e perfumes, tudo são fumos.
D. Francisco Manuel de Melo não deixou nada ao acaso. Catalogou as mulheres em categorias - mulher proluxíssima, mulher matrona, mulher brava, mulher feia, mulher néscia, mulher doente, mulher honrada, mulher impertinente, mulher ídolo, mulher gastadora, mulher ciumenta, mulher teimosa e mulher formosa. Ensinou aos homens quais as melhores escolhas do cardápio e ensinou-os a lidar com cada uma delas, alongando-se nos géneros que constituem autênticas pestes. A Honra é mais importante que a vida, logo os homens não podem permitir que as mulheres os façam cair em desgraça. Qual o remédio? O Homem terá de estar em estado de alerta constante e terá de ser o educador de sua mulher. Ela, a mulher, a eterna menor, passa dos cuidados do pai para os cuidados do marido. Enfim, uma eterna fonte de preocupações para o Homem.
Até para lidar com as mulheres feias, ele tem mezinha para tal. O marido deve evitar a presença da esposa ou, se esta for consciente da sua falta de beleza, evitar ela própria vir à presença de seu marido. Consolem-se aqueles a quem elas saem na rifa, pois casar-se com uma mulher feia tem as suas vantagens, pois mais vale viver seguro no coração que contente nos olhos, não correndo o marido o risco de ver sua esposa desejada por outros. Mas se a mulher for formosa? Folgue cada um de a ter, mas não que o mostre, pois esta mulher é frequentemente cobiçada, não faltando já quem duvidásse se a formosura se dava por prémio, se por castigo. E se lhes der para a intelectualidade? Delas tudo se pode esperar. Não lho permita o homem, pois o melhor livro é a almofada e o bastidor. Cabe às mulheres serem prezadas da melhor marmelada, boas caçarolas, consoadas pontuais, lavores esquisitos e os adornos e alfaias da casa.
A relação da mulher com o dinheiro é motivo de alerta máximo. Elas, as mulheres, gastam tudo e são incorrigíveis, logo a ruína é alvo certo. Propõe que a mulher gaste a medo e goze a medo. Mais: tendo o Homem um atributo que as mulheres não têm - a Inteligência, o homem prudente fará assim: dar-lhe-á o dinheiro como se de ração diária se tratasse. E, de quando em quando, dir-lhe-á, com ar espantadíssimo e de regozijo, como conseguiu ela fazer tanto, em benefício da economia doméstica, com tão pouco? Milagre! Elas, tontas como são, para ouvir e ver o seu esposo em tal preparo, cada vez gastarão menos. Imaginem o que escreveria D. Francisco Manuel de Melo se escrevesse nos tempos que correm, em que a palavra crise é rainha!
Muito mais haveria para dizer acerca da “Carta de Guia de Casados”. Mas, para que não se pense que a mentalidade nela espelhada é caso solto, que não faz regra, vejamos o que podemos concluir da escrita de Rétif De La Bretonne, no século XVIII, quanto aos papéis atribuídos aos dois géneros : o vosso quinhão é agradar e adoçar pelo encanto das carícias os trabalhos penosos que empreende por vós o ser forte que a vós está unido e que faz um convosco. […] O primeiro meio para ser feliz no lar […] é que o chefe mande e que a esposa ternamente querida faça por amor aquilo que se chamaria, com qualquer outra que não fosse esposa, obedecer.
Os provérbios são óptimos documentos históricos. Reparemos nestes:
Século XV: mulher que fala como o homem e a galinha que canta como galo não são boas para guardar.
Século XVIII: o cavalo bom ou mau quer espora, a mulher boa ou má quer cacete.
Pasmemos! No meio de tanta desconfiança sobre o género feminino, ainda há quem consiga descobrir na mulher algum mérito. O licenciado Rui Gonçalves, em 1557, na obra “Privilégios e Prerrogativas que o Género Feminino tem”, dedicada à rainha D. Catarina, por muitos considerado o primeiro livro feminista português, defende a igualdade antropológica do homem e da mulher e até defende a superioridade moral desta, baseando-se nas condições em que se terá dado o acto divino da criação: a mulher foi criada a partir da “costa” do Adão que estava dormindo no paraíso térreo, enquanto o homem foi criado do limo da terra, fora do paraíso, no campo Damasceno, e só depois foi posto no paraíso. Logo a mulher foi feita de melhor matéria e em mais nobre lugar, concluiu o autor.
E tu, Mulher de Hoje, melhor dizendo, Mulheres de Hoje, que pensas, melhor dizendo, que pensamos de tudo isto?
Vamos pensar? Vamos dizer?
Prometido.
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