A Primeira República e a Educação
por António Augusto Oliveira Cunha
1 -Ideais da pedagogia republicana.
O significado do termo educação, para além do uso corrente, aponta para um ideal humano, para uma ideia de bem e para um conceito de vida social. Porém, por não existir um único ideal educativo, que se tenha realizado de uma forma perfeita, é que historicamente têm surgido novos ideais educativos, os quais, respondendo a diferentes concepções de homem, são a expressão das possibilidades e das intenções de cada época.
Da mudança e transformação que o sistema educativo português sofreu ao longo do século XX “que impôs definitivamente o modelo escolar” (A. Nóvoa), um momento importante cuja demarcação é determinada pela interpenetração entre os sistemas de ensino e a ideologia política é delimitado pela proclamação da República em 1910 (e pelo seu fim com a instauração da Ditadura a 28 de Maio de 1926).
Refira-se que, apesar de não terem descurado as reformas da instrução, a criação de escolas e outros meios de cultura - sobretudo após 1820 -, os governos monárquicos deram prioridade ao desenvolvimento material do País e subalternizaram o seu desenvolvimento espiritual. Ora, segundo Oliveira Marques, o “programa republicano consistia precisamente no contrário, facto que tem de ser assinalado se quisermos apreciar com rigor e compreender as realizações da República Democrática”. Na verdade, os problemas respeitantes à instrução e à educação interessavam a um grande público e especialmente à elite, e é neste contexto que muitos dos discursos de tribunos republicanos expressam de uma forma inflamada e impiedosa a sua reacção ao que denominavam “obscurantismo monárquico”.
Herdeiros da concepção evolucionista e da tradição iluminista, os republicanos depositaram grande confiança num progresso indefinido e na virtude da instrução que será o fundamento da igualdade entre os cidadãos. Para eles impunha-se a convicção no poder da educação como elemento transformador da humanidade, mas que implicasse uma ruptura radical com a escola do passado, uma educação a que João de Barros, um dos pedagogos do regime instaurado em 5 de Outubro de 1910, denominou «educação republicana», a qual deveria romper com os defeitos do passado e conduzir ao surgimento duma nova educação que fizesse surgir um «homem novo» e renascer uma pátria Nova.
Os ideais da República e a criação de uma identidade colectiva implicavam desta forma, em primeiro lugar, uma ruptura com as antigas sujeições, e não esqueçamos que como em França e noutros países católicos, em Portugal a nacionalização do ensino está ligada à sua secularização, situando-se o debate pedagógico na crise aberta pela expulsão dos jesuítas. E tenhamos também presente que a ideia de escola laica encerra uma concepção filosófica que abrange a independência e a capacidade da razão, isto é, a autonomia. É esta concepção que a República quer fazer triunfar.
Por detrás de um mundo de frases inflamadas e de poucas consequências práticas escreve-se (no Preâmbulo do Decreto de 29 de Março de 1911) que “A República libertou a criança” e agora precisa “de a emancipar definitivamente de todos os dogmas, sejam da moral ou da ciência”. Neste contexto ideológico, a compreensão do homem novo, o «homem republicano» é remetida para uma axiologia concreta que devia nortear a sua existência ao devotamento ao «bem geral» e ao patriotismo. E, neste paradigma, a realização do homem é definida pela moral que se exprime no “exemplo prático da solidariedade” e utilidade “aos seus semelhantes” (ver Preâmbulo do referido Decreto).
A escola, sobretudo através da instrução primária, deve ser “uma oficina onde se fabrica o cidadão”, por isso é que, antes de decorridos seis meses sobre o triunfo da República se decreta a sua reforma. É o referido Decreto - o mais lírico de todos os documentos do governo provisório - onde o tom arrebatado de algumas das suas formulações encontra justificação no próprio estilo de António José de Almeida, o ministro que então tutelava a instrução. Nesse documento dissociam-se os conceitos de educação e instrução, estende-se o período da educação a toda a vida, concebe-se a instrução primária - universal, gratuita e obrigatória -, com uma finalidade de índole prática e afirma-se que além da transmissão de técnicas e saberes, era preciso «educar», formar mentalidades, criar vontades. A escola é o “laboratório da educação infantil”, e o professor do ensino primário é o sacerdote da nova ideologia, pois ele é “que ensina e evangeliza”, e que tem a função de “guia supremo da consciência dos povos”.
Com o processo educativo escolar visa-se o desenvolvimento integral - orgânico, fisiológico, intelectual e moral - das crianças. No aspecto físico esse objectivo divisa-se através da preocupação com a “instrução militar preparatória”, as formulações dedicadas à “assistência escolar” e à “sanidade escolar”; no aspecto intelectual expressa-se na valorização da instrução - enquadrada na herança dos ideais iluministas -, do saber experimental, do saber desligado dos dogmas, na reforma dos programas, métodos e formação académica dos professores; mas tudo isto surge nas intenções dos legisladores republicanos em articulação com a educação cívica, pois verdadeiramente “Portugal precisa de fazer cidadãos, essa matéria prima de todas as pátrias” (preâmbulo do Decreto de 1911), ou seja, é objectivo essencial do ensino obrigatório fazer das crianças os republicanos e patriotas de amanhã, formar civicamente os indivíduos.
Este documento identifica os ideais programáticos das primeiras reformas republicanas: a prioridade às aprendizagens básicas e à formação dos professores, mas não chegou a produzir os resultados desejados devido à instabilidade e contradições do regime, que através de medidas e contramedidas ia anulando a maioria dos projectos inovadores.
Nos próximos números:
2- Realizações republicanas no sector do ensino.
3 Características da pedagogia na I República
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