A Primeira República e a Educação

por António Augusto Oliveira Cunha

2 - Realizações republicanas no sector do ensino.


Símbolos claros da preocupação com o ensino na República são a criação do novo ministério da Instrução Pública em 1913 e as várias propostas de reforma do ensino, algumas delas de difícil realização prática (uma delas propunha um sistema de instrução pública totalmente gratuito aos três níveis). Visando os problemas tradicionais (o analfabetismo, a carência de escolas primárias, a falta de preparação dos professores desse mesmo grau de ensino e a sua deficiente situação económica), as reformas deram-se fundamentalmente ao nível primário e superior, tendo sido relativamente menos cuidada a instrução secundária.
Se considerarmos que a criação do ensino infantil se ficou “pelas tintas ou meias tintas” (A. M. Bárbara), e que a defesa da ideia da educação pública e nacional pelo Estado - uma invenção das Luzes - tem o duplo objectivo: formar o cidadão e democratizar o ensino; é realçável que a República tenha reconhecido que “o laboratório da educação infantil está (...) na escola primária, e é lá que verdadeiramente se há-de formar a alma pátria republicana” (Decreto de 29/03 de 1911). Quanto à democratização do ensino, ou seja, a promoção do acesso a uma educação integral para o máximo número possível de indivíduos, é compreensível essa preocupação republicana; é que, sem sombra de dúvida, uma educação abandonada à iniciativa privada significava - hoje também - uma educação minoritária. Mas a importância que os republicanos atribuíram à educação primária, decretando reformas, cuidando da preparação científica e pedagógica dos professores, modificando programas em cumprimento das exigências da vida moderna, realçando a importância dos métodos, etc., tem um duplo alcance: é a base da hierarquia escolar e projectou-se através dela a transformação mental do país
Nos finais do século XVIII e princípios do século XIX, quando muitos políticos nos diversos países europeus atribuíam especial importância às aprendizagens básicas, entre nós, apesar disso, no final do século (XIX) o analfabetismo atingia 4/5 da população. Foi considerado “uma vergonha nacional” e pelos republicanos “um motivo para mudar de regime” (A. Nóvoa). A criação das escolas móveis (em 1911 e início de funcionamento em 1913), tidas como uma das realizações mais notáveis da República, foi a forma tentada para erradicar esse mal considerado congénito. Apesar disso, “quando a República Democrática chegou ao seu termo, mais de metade da população portuguesa compunha-se de analfabetos” (Oliveira Marques) e pode dizer-se que o combate ao analfabetismo foi “um dos grandes fracassos da República” (A. Nóvoa).
Realce-se que este fracasso no combate ao analfabetismo não foi algo exclusivo da República; várias políticas educativas tentadas desde a época da monarquia tiveram a mesma sorte. Ora, segundo Alves dos Santos, não é tornando o ensino obrigatório que se acaba com um mal que é “hereditário”; a solução encontra-se na “estrita gratuitidade”, na descentralização, etc. Mais ainda, acrescenta o ministro Sousa Júnior a propósito da criação das escolas móveis: é “a escola que deve procurar o analfabeto e não podemos ficar aguardando que o analfabeto venha procurar a escola”.
A legislação de 1911 estabelece a instrução para todas as crianças aos níveis infantil e primário, sendo obrigatória entre as idades de sete e dez anos. Classifica o ensino elementar em infantil e primário, abrangendo este três graus, primário elementar, primário complementar e primário superior. Embora a criação das escolas primárias superiores estivesse prevista na Reforma de 1911, o seu arranque deu-se apenas em 1919, na sequência da Reforma então havida. Leonardo Coimbra, ministro da Instrução (e antigo professor no Liceu Rodrigues de Freitas), estava convicto de que estas escolas podiam ter sido a grande obra de democratização do ensino da I República; todavia, sujeitas a ataques vindos dos mais diversos quadrantes políticos, não tiveram vida fácil. Adolfo Lima (um pedagogo renovador) via neste ramo de ensino “a escola geral primária prolongada na sua transição para a aprendizagem”; no Decreto que as regulamenta, afirma-se que este tipo de ensino se destina sobretudo “aos filhos das classes trabalhadoras” (Decreto n.º5504 de 05/05 de 1919). Ora é certo que concebido com um carácter integral, activo e tecnológico, o ensino primário superior visava democratizar o ensino e concretizava o tipo de regime de escola única; mas em Janeiro de 1924 foi-lhe dado um golpe fatal por António Sérgio quando ministro da Instrução, ironicamente outro homem da Educação Nova. Em Junho de 1926, a Ditadura extingue definitivamente as escolas primárias superiores.
Quanto ao ensino técnico e comercial, reorganizado durante a gestão Fontista da Regeneração, refira-se apenas a existência de algumas melhorias que se fizeram sentir sobretudo após o término da primeira guerra mundial. No entanto, face à necessidade de fomentar o ensino técnico e profissional realçada pelos intelectuais republicanos, antes e depois de 1910, não correspondeu a desejada concretização prática.
O ensino liceal foi a área onde a acção republicana se exerceu de forma menos inovadora. Continuou em vigor a reforma de 1895 (J. Franco-J. Moniz), com pequenas alterações introduzidas em 1905, e depois com outras mais significativas durante o ministério de Alfredo de Magalhães (1918), que procuravam responder à necessidade por muitos sentida da existência de um escol com influência nos negócios públicos.
Além do incentivo dado à educação primária, a acção desenvolvida na República merece realce pelo impulso que deu ao ensino superior ao criar as Universidades de Lisboa e Porto (1911) e ao ter facilitado o acesso dos estudantes a este nível de ensino. Todavia, romper com a educação do passado e idealizar a existência dum homem novo fruto dessa educação obriga a repensar o perfil do educador. Ao professor, e dum modo especial ao professor do ensino primário, exigia-se que desempenhasse uma função educativa, que ultrapassasse o simples papel de transmissor de conhecimentos, e fosse o regulador da actividade social do meio onde vive e legítimo guia de homens. Temos, assim, face à valorização que a República pretendeu imprimir ao ensino primário, também valorizada socialmente a figura do professor. Como sabemos, o Estado Novo, apesar de utilizar o professor como instrumento de doutrinação, agiu de modo inverso.
Os responsáveis republicanos adoptaram como uma das primeiras prioridades a reforma do ensino normal; neste sentido, criaram numerosas escolas normais, adoptaram métodos e apetrechamento actualizados (O. Marques), mas tiveram dificuldade em ultrapassar os condicionalismos impeditivos do desenvolvimento das novas instituições de formação de professores, daí que, apesar de se ter assistido entre 1910 e 1918 à republicanização das «antigas» escolas normais e de habilitação para o magistério primário, nenhuma alteração qualitativa de fundo foi efectuada na estrutura do sistema de formação de professores; pelo contrário, houve mesmo alguma degradação, fruto da situação de provisoriedade em que passaram a viver (A. Nóvoa). Acerca da formação de professores do ensino secundário, a mais importante medida tomada foi a criação de Escolas Normais Superiores que funcionavam integradas nas Universidades de Lisboa e de Coimbra. Instituídas em 1911, só começaram a funcionar no ano lectivo de 1915-1916 e também com uma vida muito atribulada. Numa das mais contestadas iniciativas do Estado Novo, foram extintas em 1930.
No final da República, aproximadamente 2/3 dos portugueses não cumprem a escolaridade obrigatória. Apesar de dominada pelo analfabetismo, ou por isso mesmo, grande parte da população continua a viver à margem da escola, e à excepção de uma pequena camada, a escola não era considerada como via privilegiada de promoção social.

No próximo número:
3. Características da pedagogia na Primeira República

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