Noite Garrettiana


por Célia Beatriz Vouga e Maria Guilhermina Gama (Professoras da EBSRF)

A sessão “Noite Garrettiana”, dinamizada pelas professoras de Português Célia Beatriz Vouga e Maria Guilhermina Gama, foi levada a efeito na Biblioteca Jaime Cortesão em 7 de Abril de 2011, integrando-se no Projecto de Animação Comum com a Biblioteca Municipal Almeida Garrett, que comemora, no corrente ano, o seu primeiro decénio.
Figura incontornável do Romantismo português, Almeida Garrett afirmou-se como cidadão e homem de letras, destacando-se em campos tão diversos como o teatro, a poesia, a prosa, o jornalismo, a pedagogia e a política.
Identificado com os ideais do Cristianismo e do Liberalismo, várias vezes exilado, nunca desistiu de lutar pela monarquia constitucional e de defender, para Portugal, soluções moderadas e conciliatórias.
Menos moderada e conciliatória seria, no entanto, a luta travada no que viria, talvez, a revelar-se o seu mais difícil combate: o de índole amorosa, aquele em que o homem volúvel, de amores fáceis e grande coração, se deixaria ancorar numa paixão incandescente e duradoura que, elevando-o a venturas paradisíacas, o aprisionaria também em insolúveis conflitos íntimos.
Em meados da década de quarenta, já prestigiada figura pública e em plena maturidade, Garrett apaixona-se perdidamente por Rosa de Montufar, andaluza de estonteante beleza, cerca de vinte anos mais nova e casada com o Visconde de Nossa Senhora da Luz. Esta paixão ardente, que se desenrola entre os vibrantes encontros a sós e a máscara forçada do convívio mundano, escandaliza a moral vitoriana da Lisboa oitocentista, que sobretudo censura a ligação adúltera com uma mulher casada.
Mas se a relação chocou a sociedade da época, tal escândalo culminaria com a publicação da colectânea de poemas “Folhas Caídas”. Datada de Abril de 1853, sem menção de autoria, a obra surpreendeu e apaixonou o público pelo seu carácter inovador e moderno, pelo despudor, pelo erotismo, pela sensualidade, pela inclusão do sexual, pelo exibicionismo de uma paixão proibida, traduzida numa expressão intimista, pessoal, aparentemente coloquial e espontânea. Em numerosos poemas, figuravam as palavras “rosa” e “luz”, numa clara alusão àquela que os inspirara.
Entre a indulgência das mulheres e a crítica dos homens, a colectânea era comentada, em segredo, nos salões. Em Maio, a edição estava esgotada e, no próprio mês reeditada, a obra viu-se objecto da mesma procura ávida por parte dos leitores.
Se, por motivos vários, esta colectânea mereceu uma recepção única, o próprio Garrett parece tê-la previsto e preparado, através até da escolha do título: estas “Folhas Caídas” sugerem, sem dúvida, as folhas outonais que se desprendem das árvores à semelhança de Garrett, que escreve estes poemas no Outono da vida. Mas sugerem mais: sugerem também folhas de papel, dispersas, espalhadas ao acaso, como se o autor, inadvertidamente, as tivesse deixado cair e, ao apanhá-las, penetrássemos na sua intimidade, na intimidade de uma confissão que se faz pública.
Depois da morte de Garrett, no ano seguinte, de entre as muitas cartas de amor recebidas pelo poeta, as centenas que lhe tinham sido dirigidas por Rosa de Montufar foram reunidas e entregues à autora. Quanto às centenas que Garrett lhe haveria também escrito, a Viscondessa da Luz declarou terem sido queimadas. Persistiu, no entanto, a convicção de que algumas dessas cartas teriam conhecido outro destino e, de facto, verificou-se que 22 manuscritos se encontravam nas mãos de um bibliófilo açoriano, de onde transitaram para a Biblioteca Pública de Ponta Delgada.
Só em 1954, precisamente um século após a morte do autor, o público pôde conhecer esses manuscritos, o que restou duma vastíssima e inflamada correspondência. Só então os leitores mas os do século seguinte puderam testemunhar a confissão privada, a confissão confessional do que, cem anos antes, fora público em “Folhas Caídas”.
E é, sem dúvida, apaixonante conhecer a história dessa paixão. É, sem dúvida, apaixonante, para o leitor das cartas e de “Folhas Caídas”, ver como vida e obra se entrecruzam, num vaivém constante entre o universo íntimo e o cenário público, revelando os conflitos interiores do poeta, exprimindo toda a diversidade de vivências e de estados passionais - desde o enamoramento cego, passando pela saudade, pelo ciúme, pela ansiedade, pela dialéctica entre elevação amorosa e paixão sensual, até à abdicação da transcendência do amor.
Com base num trabalho de investigação de cariz literário e histórico, procedeu-se a uma criteriosa análise e selecção da documentação disponível, tendo em vista a elaboração de um guião que permitisse a dramatização de excertos de cartas e a declamação de poemas de “Folhas Caídas”.
A sessão “Noite Garrettiana” propôs uma pequena incursão nestes dois universos, uma breve deambulação entre estes dois mundos. Em ecos facilmente audíveis, numa circularidade que se impõe ao leitor, poemas e cartas dialogam entre si. Sem estabelecer cronologia ou nexos de causalidade, pretenderam-se apenas reconhecimentos - de alguns dos momentos em que, no poeta, lemos o homem e em que, no homem, reencontramos o poeta.
A dramatização dos textos garrettianos, que esteve a cargo dos alunos do Ensino Secundário Recorrente, Cursos EFA NS/1 e EFA Básico, permitiu a reconstituição do percurso íntimo de uma paixão avassaladora, plasmada em diferentes matizes e registos linguísticos.
A sessão foi enriquecida através da criação de um power-point alusivo às coordenadas semânticas dos textos seleccionados e ilustrativo do enquadramento sociocultural da época. A inserção de momentos do Nocturno op. 9 nº 2 de Chopin e a utilização de diferentes plataformas de representação e jogos de luz contribuíram também para a sugestão dos vários espaços físicos e para a inteligibilidade do discurso dramático.
A intenção de conferir autenticidade e realismo à reconstituição biográfica e histórica dos protagonistas traduziu-se ainda na utilização de peças de vestuário e adereços característicos do século XIX. A decoração da Biblioteca Jaime Cortesão foi objecto de especial atenção, de forma a recriar a ambiência romântica da época.
Afigura-se-nos fundamental elogiar a disponibilidade e o entusiasmo manifestados pelos alunos do Ensino Nocturno, provenientes de diferentes percursos escolares e diversificadas faixas etárias, que, apesar das suas obrigações profissionais e exiguidade de tempos livres, se prontificaram a participar e se empenharam totalmente nos ensaios realizados.
É de salientar a importância de que se reveste a realização de iniciativas desta natureza, fundamentais para a estruturação das competências dos discentes, optimizando a sua expressão oral e a autodisciplina necessária à comunicação com uma plateia e preparando-os para enfrentar situações idênticas no processo de ensino-aprendizagem ou na vida pessoal.
O elevado número de alunos participantes bem como os aplausos espontâneos do público confirmam-nos que os objectivos pretendidos foram plenamente atingidos.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Escola de Miragaia

Entrevista a Manuel Cruz