Intervenção nas comemorações do 50º Aniversário da Turma A do Liceu D. Manuel II.
por Viriato Pina Moura
Exmos Senhoras
Professoras da Direção do Agrupamento de Escolas Rodrigues de Freitas
Estimados
Professores que felizmente a nós hoje se juntam.
Meus caros
Companheiros,
A todos a
minha saudação.
Fui
democraticamente designado, num almoço onde não estive presente, para dizer
hoje umas palavras. Posteriormente vi este momento designado como “Oração de
Sapiência”.
É uma designação pesada... Espero sinceramente não vos desiludir.
1964
-1969: afinal quantos anos foram esses cinco anos das nossas vidas?
A
pergunta justifica-se como uma variante da questão clássica, ainda por responder - Quantos minutos é um minuto?
A
primeira resposta, ingénua, seria que foram esses 5 anos, cinco anos, entre Outubro
de 1964 e Julho de 1969
Mas
será assim?
Porque perduram esses cinco anos na nossa vida mais que
quaisquer outros cinco anos?
Porque estamos aqui a evocá-los de forma que dificilmente
acontecerá com quaisquer outros cinco
anos dos muitos cinco anos que, aos sessenta, já contamos?
Porque nos juntámos com facilidade e entusiasmo, como se
se tratasse de dar continuidade a um jogo de futebol que tivésssemos
interrompido na última aula de ginástica, não há cinquenta anos mas há cinco
dias?
Como conseguimos retomar as conversas com uma
convivialidade idêntica à de um regresso apenas de umas férias de Verão?
Confirmar-se-ão, afinal, as belas palavras da bela canção “Tout le
monde”, na bela voz de Carla Bruni.
“Tout le
monde a de l'enfance qui ronronne,
Au fond d'une poche oubliée
(todos temos pedaços de infância esquecidos a ronronar no fundo de um bolso)
Será
então que esses cinco anos já terminaram?
Fica desde
já a todos colocada a questão. Deixemo-la em aberto, para já.
Em
1964 estava em conclusão um avanço científico fundamental que receberia a
designação de Teoria Operatória do Conhecimento, protagonizado por Jean Piaget
e a Escola de Genebra, que elucidariam com a sua Epistemologia Genética a
índole processual do conhecimento humano, como um “fazer-se”, como um processo de construção. Um processo que ocorre em termos de sucessivos equilíbrios, cada vez mais
estáveis, numa “equilibração”
contínua em que o sujeito , a partir de sucessivas “assimilações”, acomoda o seu pensamento aos objetos, atravessando
uma série de períodos sequenciais, necessários. Um processo com inicio num
período sensório-motor , desde pouco depois do nascimento e que se completa com
o que ficou designado como o periodo das
operações formais, que se abre precisamente por volta dos onze, doze anos
até à adolescência, etapa em que a criança atinge a posse da atividade mental
típica do ser humano.
Nesta
fase “o real” torna-se apenas um caso especial do” possivel “
O
adolescente, libertando-se desse modo das operações concretas que antes em cada
problema tinha de recolher no meio
exterior, passa a operar agora com os resultados de outras operações
Passa-se
da realidade à possibilidade, isto é, a um pensamento não empírico.
É
nesta idade que se começa a raciocinar
de forma lógica, com enunciados puramente verbais “hipóteses”, que se desenvolvem o raciocínio hipotético-dedutivo,
as deduções lógicas sem o apoio de objetos concretos, que se começa a refletir para além do real
presente, a refletir sobre possibilidades, a fazer planos, a elaborar“teorias”, a construir “sistemas”, a pensar sobre o próprio
pensamento.
Naturalmente
que ignorávamos tudo isto .
E mesmo os nossos pais e aqueles que seriam os
nosso mestres neste período decisivo das nossas vidas teriam então desta “descoberta
científica”, quando muito, ecos ou noções parcelares, intuições, decorrentes de
uma madura pratica lectiva e pedagógica nas áreas especificas do seu saber, que
fizera deles professores de topo metodólogos ou não, em todo o caso docentes particularmente
atentos e abertos à inovação.
Estamos
pois em 1964.
Temos
10/11 anos. Estamos portanto à entrada da etapa do “período das operações formais “ do nosso crescimento humano...
Éramos um
núcleo de elite, o que não quer dizer necessariamente elitista.
A turma fora criada pela meritocracia afirmada no exame de admisão ao Liceu, os 35 alunos com
as melhores notas dos cerca de 500 alunos que, nesse ano, demandaram o exame de
admissão ao Liceu Normal D. Manuel II.
A Escola, então
Liceu Normal, ou seja, onde decorria a formação e creditação pedagógica de
professores, foi consequente, e, entregou-nos a uma pleíada de professores a vários
títulos notáveis. Não por acaso seríamos então o objeto de inovação cientifica
e pedagógica.
Por isso e
desde já quero começar por reafirmar os dizeres da placa que
afixámos nesta data no átrio, “50 anos passsados, agradecemos à Escola que nos
acolheu e aos nossos Professores”.
Não seríamos
o paradigma do que o sistema escolar da
época tinha para oferecer à generalidade dos alunos, ainda que essa
generalidade fosse ela mesma uma reduzidíssima
minoria da juventude nacional em idade escolar. Mas antes a confirmação de que o
sistema escolar conseguia com êxito, dentro de si mesmo, criar a elite da
elite.
Dito isto e seguindo sempre a letra da canção resolvi
remexer no fundo dos meus bolsos.
E aqui vos deixo pedaços de infância que encontrei e que convosco tenho o prazer de partilhar neste dia.
A memória inicial mais
impressiva, para mim, é aquilo a que
chamaria “subversão pedagógica” incutida por vários dos nossos professores, logo
à entrada no 1º ano.
Viviamos tempos muito conservadores. Anos e anos seguidos
pouco mudava no quadro pedagógico e científico de um liceu. Ainda tínhamos alguns
programas e livros adoptados que eram os mesmos do tempo de liceu de nossos
pais. A expectativa do que seria o dia a dia num liceu era séria, grave, pesada,
responsabilizante. Começado o ano escolar os ecos que tínhamos do que eram aulas no liceu
não era bem o que estávamos vivenciando.
Essa “subversão” incluia Professores, vários, que à partida,
não seguiam os manuais adoptados e que recomendavam mesmo que não olhássemos
para o “livro único”, porque, apesar de únicos e oficiais, esses manuais
continham erros científicos e erros de facto, devendo nós, a partir das
aulas, construir os nossos elementos de trabalho e estudo, com a consciência que os nossos
cadernos valiam mais que o manual.
E depois havia as
aulas em si.
À cabeça
começo por evocar as aulas dadas por um professor invariavelmente sentado numa das
carteiras, nunca subindo ao púlpito do poder do professor - o estrado e a
secretária - repartindo com um de nós, magríssimo, o estreito assento da
carteira, frequentemente fumando, não desperdiçando o tempo lectivo a escrever
o sumário da aula, pois haveria de
gastar uma aula no final do período para cumprir de uma só vez a obrigação burocrática.
E
desprezando absolutamente o ritmo com que seria suposto ser dada a matéria,
impondo uma divisão e gestão do tempo lectivo por critérios estritamente ditados
pelo interesse científico que atribuía
às matérias – cinco, seis aulas, o que fosse necessário para fazer pesagens,
medições, registos, gráficos ou para ver filmes, do infinitamente pequeno ao infinitamente
grande, da vida da célula ao deslumbramento do universo...
Sim,
falo, sem dúvida, do Professor Augusto Medina e da sua pedagogia e didática
originais .
Confirmava-se
que afinal a aprendizagem podia ser feita de uma forma muito divertida.
Realizando
gráficos, que registavam em papel milimétrico, durante um mês, os dias em que
um de nós fungava do nariz por se ter esquecido do lenço.
Obrigando-nos
a descrever, como se de um relatório de experiência de laboratório se
tratasse, todas as etapas em que consistia “tomar banho”, para concluir, desconcertantemente,
que em virtude do tempo gasto na descrição ocorrera a evaporação da água quente destinada ao banho e o mesmo ficara por
tomar... Visualizando filmes sobre algumas descobertas e ”novidades”
científicas. Fugindo sempre que possivel da sala de aulas para irmos “visitar a
família” ao museu de história natural. Observando minuciosamente o “esfolado” na
introdução ao estudo do corpo humano da sua anatomia e fisiologia. E aprendíamos,
também, que dizer “ na pág. X do livro está a Cassiopeia “ é, em ciência, substancialmente diferente que
dizer,” na pág. X está uma gravura que representa a Cassiopeia”.
E
aprendemos também a evitar dizer coisas redundantes, ou supérfluas, ou
apenas para nos evidenciarmos pois teríamos como resposta pronta e invariável “Olha, menino,vai para
casa e manda escrever isso nos teus cartões de visita ...”
Foram
ensinamentos que valeriam mesmo para
quando um dia mais tarde esquecêssemos a
“matéria”, ou quando a evolução da ciência viesse desmentir o que aprenderamos...
Mas como se devessemos definitivamente ficar a saber
que a ciência, a prática cientifica e o conhecimento e o discurso científicos
são uma estrada árdua que requer observação, medição, rigor, detecção de relações,
elaboração de conceitos, de leis, sistemas que requerem recorrente
confirmação, que o conhecimento é por definição algo em aberto e
provisório.
Uma
atividade ostensivamente distinta do
dogmatismo ou ainda do que é simplesmente
comentar ou opinar, ou, por maioria de razão, daquilo que correntemente hoje, de forma vulgar, se gosta de chamar “participar”...
Mas a
ousadia continuava..., e não se ficava pelas
aulas de ciências.
Aprendíamos
a primeira língua estrangeira, no caso o francês, rigorosamente proibidos
durante cerca de cinco meses de olhar para qualquer peça escrita do mesmo, em
aulas que nos remetiam invariavelmente
para o universo do professor Higgins ensinando Eliza em My Fair Lady, filme estreado nesse mesmo ano de 1964 e que veríamos
apenas uns anos mais tarde no cinema...
Evoco obviamente as inesqueciveis aulas do professor
Adriano Teixeira. A teatralização total das aulas, com as bocas abertas,
recorrendo ele para isso a vários
expedientes de que todos se recordarão, até emitirmos a correcta pronúncia das diferentes nasais
francesas. Ou, simplesmente, a robotização com que cada um de nós, ao ouvir a instrução “Numéro 35, venez au tableau!“ se levantava
e dirigia ao Quadro dizendo necessariamente,” Je me lève / je vais au tableau /
je monte sur l´estrade / je prends la craie / j´écris sur le tableau / je prends
l´éponge / j´éfface le tableau / je descends de l`estrade / je regagne ma place /
je m´assieds.
Foi uma aventura que prosseguiu por cinco anos, e que
nos pôs definitivamente a falar francês pensando em francês. Uma proeza de
aprendizagem de uma língua pelo método da língua materna.
E que incluiria para alguns de nós o “estrelato” do nossa desempenho como actores, não de
telenovela..., mas de aulas de francês da Telescola, que então dava os
primeiros passos nos estúdios do Monte
da Virgem.
As aulas de português, se bem que austeras, não eram a vulgar
leitura da Selecta e o treino das construções gramaticais.
Ainda que se não lembrem, suspeito que ao longo da vida, ao escrever um “reporting” de gestão, um “sumário
executivo” em qualquer trabalho, ao iniciar redacção de um “abstract”,
a fluência dos mesmos é ainda aos trabalhos de casa marcados pelo Professor
António Salgado Júnior, consistindo invariavelmente em ler um texto, dividi-lo
em partes, dar um título a cada uma e resumi-la em não mais de dez linhas que
inspiradamente regressamos.
E a introdução ao gosto pela leitura, a que o nosso
professor inteligentemente nos introduzia, recebeu mesmo o impacto inspirador de
vermos, nas provas de exame de estado de um dos professores estagiários, a
presença do escritor Vitorino Nemésio, sentado como elemento do júri, na última
fila da nossa sala...
Tivemos
também aulas de Matemática que em vez de “avançarem”
no cumprimento do programa oficial, nos
levaram durante meses seguidos pelos
caminhos da Teoria dos Conjuntos, exercitando-nos afinal nas operações formais,
que eram ajustadas, sabemos hoje, à
etapa do nosso crescimento.
Sim, falo
do Professor Macdonaldo.
Até
no domínio das aulas de desenho, com o Professor Mata de Almeida, recebemos
consignas específicas de não comprar mais cores que o preto, o branco e as
três cores primárias, devendo explorar
toda a nossa criatividade cromática e
estética a partir desses recursos básicos...
Esse
impacto à entrada do Liceu não se frustaria nos anos seguinte.
Permito-me, pessoalmente, destacar nesse segundo ciclo,
ainda na óptica da inovação com que tivemos o privilégio de conviver a descoberta, nas aulas de Português, com o Professor Óscar Lopes, no 3º ano através do português de Gil Vicente, a
aventura que pode ser afinal a história de uma simples palavra, na sua viagem
do latim ao portugês. Ou, já no 5º ano, o confronto com a matemática que subjaz à língua falada e
escrita, através dos exercícios de
divisão de orações sobre as estrofes dos Lusíadas, transformadas no quadro num comboio visual de pequenas
janelas, ligadas entre si por diferentes
símbolos da lógica algébrica ( e, ou , se,
mas, quando, talvez, por causa de, em consequência de ) conforme o
discurso poético de Camões.
E como pano de fundo permanente, ao longo de três anos, o treino
para a escrita e a educação à pratica e ao gosto da leitura, enquanto
exercício criativo sempre com um carácter provisório, de descoberta dos textos
através de tentativas, de tal forma que, em resultado, para quem lê “compreender,
realmente, uma obra é compreender-se melhor.”
Recordo pessoalmente ter saído de uma aula em que a obra
“O Malhadinhas ” de Aquilino Ribeiro apresentada e comentada pelo nosso professor, me conduziu a uma viagem
direta à livraria para o poder ler na íntegra...
E, noutro plano, a
memória, para sempre, da pergunta que
me dirigiu perante um texto encumiástico que escrevi sobre Eça
de Queiroz, cheio de rebuscada adjetivação e lugares comuns sobre o escritor - “Será, disse Óscar Lopes, que tens já o
suficiente conhecimento da obra de Eça, para
poderes dizeres dele todos esses adjetivos? Que obras dele já leste?
Foi arrasador, apesar do tom afável e cordial que sempre
usava.
Nesta fase , destaco também as aulas de matemática do
professor Heliodoro Lopes, pela serenidade e sistematicidade com que nos fez
avançar de forma consistente, passo a passo, pelos caminhos que consolidariam
para sempre o nosso desenvolvimento intelectual, dotando-nos de uma bagagem que
nos prepararia com segurança e confiança para todas as etapas subsequentes no domínio
das ciências lógico-dedutivas.
Os destaques que faço são seleção estritamente pessoal.
Sabemos hoje que a memória
não é de todo objetiva.
Por isso num exercício da
mais elementar justiça e, uma vez que
não temos tempo para contar aqui todas
as “histórias”, não me dispenso de uma
nomeação de todos os professores que naqueles
anos já distantes, contribuíram para
nossa formação envolvendo nela todo o nosso reconhecimento e o nosso afecto.
Assim, para além dos já citados, e por ordem cronológica, evoco ainda Múrias de Queiroz, Marques de Sousa,
Teixeira Lopes, Magalhães Queiroz, Maria
Rosa Plácido, Arlindo Magalhães, Custódio Cardoso, Malcata Julião, Júlio Leal
de Loureiro, Helena de Sousa, Mário Pais de Oliveira, Manuela Lemos, Alexandrino,
Arnaldo, Fernando Magro,Branco Queiroz, Campos Fernandes, Sarmento.
Mas a nossa formação não foi nesses anos apenas académica.
Crescíamos
em várias dimensões.
Aprendíamos,
também, a ser avaliados, a conhecer o êxito e o insucesso, a lidar com o stress,
a sonhar, a fazer planos e projetos, a concretizá-los ou não.
E ainda o caracter estruturalmente incompleto e provisório do nosso conhecimento...
E tal exigiria que
continuásssemos.
O
objetivo era mesmo saber. Dominar o conhecimento. Não invariavelmente ter sucesso.
Ainda
que excelentes, não tínhamos vinte... Como que a ensinar-nos, que ainda nos
restava sempre mais para aprender.
Regresso
de novo à letra da canção:
Tout le
monde a des restes de rêves,
Et des
coins de vie dévastés,
Tout le monde a cherché quelque chose un jour,
Mais tout
le monde ne l'a pas trouvé
Seria
assim pela vida fora.
Antes
de nos confrontarmos com os resultados de uma avaliação, talvez ainda sintamos
a mesma emoção da espera, antes da leitura das notas nas pautas afixadas no
átrio deste mesmo Liceu, onde há pouco estivemos. Ao darmos uma resposta errada a uma questão ou situação talvez possamos ouvir,
distante, a voz fina mas sonora da professora Rosa Plácido, despachando
um rápido e cortante “Não, nunca jamais em
tempo algum”. E em consequência a sentir a responsabilidade e o cuidado em acertarmos da próxima vez.
Mas também,
ao contrário, numa relação professor/aluno que se mantinha basicamente distante
e formal, o reconforto e o incentivo de um
simples olhar conivente e elogioso perante os bons resultados, na distribuição dos pontos ou no final do
trimestre.
Houve
também episódios de introdução ao confronto com a envolvente da sociedade de
então em toda a sua normatividade, as restrições,
os regulamentos da instituição escolar de forma a mantê-la sob controlo apertado
no contexto duma sociedade totalitária. Conhecíamos de cor todos os corredores,
físicos e outros, em que não nos era permitido circular...
A
este título gostaria de evocar o
episódio da expulsão colectiva, no 5º ano, na aula do professor Leal de
Loureiro.
Em
plena exibição de um filme sobre Cabo Verde, com imagens acompanhadas do som de
batuques, no anfiteatro, às escuras, o batuque estendeu-se subitamente à sala, para
nosso divertimento, com recurso, aos tampos das mesas e aos nossos próprios
pés.
À
ordem de expulsão da fila de trás, dada pelo professor, seguiu-se a retomada da exibição do filme, e o
recomeço do batuque interno, o que acabaria com a ordem de expulsão sucessiva e colectiva,
das restantes filas, com a interrupção da aula e a correspondente ameaça de
marcação de falta a todos.
Um divertido
e ingénuo episódio juvenil, não por responsabilidade directa do professor, que, lucidamente,
se preparava para encerrar o episódio com o “castigo” que consistiria em “não
vermos o filme “, transformar-se-ia com a participação ao reitor, feita pelo contínuo de serviço, num ”grave“ problema
disciplinar.
Choveram
ameaças directas com o objectivo de serem delatados os responsáveis do “movimento”.Perante o insucesso confirmado
das “pressões”, seguiu-se a chamada de alguns pais ao director e ao reitor, os
quais seriam então confrontados com a gravidade de uma manifestação
“antigovernamental” perpetrada pelos seus educandos. Estava em causa uma pateada assintosa a um filme que se reportava a uma das nossa colónias” . Por coincidência, diligentemente assinalada pela autoridade o episódio ocorreu no dia 1º de Maio!.
Por fim choveu ainda a
derradeira e decisiva chantagem. Estávamos em ano de exame, e ainda que cerca de 9 em cada 10 de nós tivessem média de dispensa, poderíamos estar condenados afinal a ir a exame...
Nem assim ninguém
se “chibou”. Ficariam para sempre anónimos os “culpados”.
O episódio terminaria sem consequências de maior, uma vez frustrada que
foi a estratégia da autoridade para educar os jovens na delação.
Ainda agora, na preparação desta comemoração, procurámos vestígios do “processo crime” do caso, sem resultado...
O episódio remete-nos para outra das memórias desse tempo: o papel de alguns contínuos no sistema de controlo de alunos e professores, actividade
em que se destacava o todo poderoso chefe
dos contínuos Vaz, exercitando as suas ameaças boçais, verbais e físicas, sobre
os estudantes e inclusive junto de
professores mais novos ou mais tímidos.
Daí que recordemos, neste tema, o reconfortante episódio, quando um dia, à chegada à sala de
aulas, o Professor Augusto Medina,
encontrando dentro da sala o mencionado “Vaz” o confrontou assintosamente: “O que faz o senhor, dentro da minha sala de
aulas?”, para, de imediato, o despachar com
corajosa arrogância “ Faz favor saia imediatamente!” e, “no caso de ter aqui
algum assunto a tratar, bate primeiro delicadamente à porta e aguarda respeitosamente que eu lhe dê ordem
para entrar!
Foi mais uma inesquecível lição, se bem que neste caso
não exactamente de ciências naturais...
Era assim o nosso pequeno mundo.
E nesse pequeno mundo, nesses cinco anos afinal tão
longos houve também o nosso crescimento pessoal.
Recorro de novo às canções.
Se, em 1964, ouvíamos
a Gigliola Cinquetti dizendo:
“Non ho l´età per amarti,
non ho l´età per
uscire sola con te”.,
antecipando muitas
das “tampas” que nos estariam reservadas pela vida for, já, em 1969, acompanhávamos
os Beatles em "Don't Let Me Down", cantando:
Nobody ever loved me like she does
Oh, she does, yeah, she does (…)
I'm in love for the first time
Don't you know it's gonna last
It's a love that lasts forever
It's a love that had no past And from the first time that she really done me
Oh, she done me, she done me good
I guess nobody ever really done me
Oh, she done me, she done me good
e tudo isto, ainda que nos limitássemos então, a subir alvoroçadamente
as escadas do Carolina, treinando os caminhos que nos seria requerido percorrer ao
longo dos anos vindouros para realizar as nossas conquistas...
Entretanto, lá fora, o mundo agitava se mesmo bastante e irreversivelmente.
Em Maio de 1968, os
estudantes franceses iniciavam a ocupação das ruas de Paris.
E em Agosto de 1969, nos EUA, o movimento hippy explodia em Woodstock.
Os limites eram excedidos, em Julho de 1969, o Homem
chagava à Lua.
Cá dentro, na aparente imobilidade social e política que
imperava à superfície, uma nova realidade profunda e irreversível, nascia.
Teríamos que viver a aguardar os seguintes cinco anos. Até 1974.
Sabemos
então hoje que a memória não é inocente
e que apenas parcialmente é objectiva. Remexei então nos vossos bolsos e encontrareis seguramente os vossos próprios pedaços desses
cinco anos, a acrescentar à história que aqui vos deixei. E assim poderemos
continuar a contá-la.
Não
se esqueçam, nunca, como diz a canção:
“Tout le monde est une drôle de
personne” (“Somos todos alguém
especial, interessante”)
Ou, como
escreveu um dia Óscar Lopes,
Cada um de nós é
muito mais (e muitos mais) do que aquele que se vê.
E, ainda uma vez mais a canção:
“Il faudrait que tout le monde réclame auprès
des autorités,
Une loi contre toute
notre solitude,
Que personne ne soit
oubliée”.
Como não julgo expectável
que uma tal lei seja um dia publicada, continuemos os nossos encontros, troquemos
as nossas mensagens e prossigamos para já esta nossa comemoração.
Muito obrigado a
todos
Viriato Pina Moura
Porto, 11 de
Outubro de 2014
Canção
“Tout le monde”
Música
e letra de Carla Bruni)
Tout le monde est une drôle de personne,
Et tout le monde a l'âme emmêlée,
Tout le monde a de
l'enfance qui ronronne,
Au fond d'une poche oubliée,
Tout le monde a des
restes de rêves,
Et des coins de vie
dévastés,
Tout le monde a cherché quelque chose un jour,
Mais tout le monde ne l'a pas trouvé,
Tout le monde a une seule vie qui passe,
Mais tout le monde ne s'en souvient pas,
J'en vois qui la
plient et même qui la cassent,
Et j'en vois qui ne la voient même pas,
Tout le monde est une drôle de personne,
Et tout le monde a une âme emmêlée,
Tout le monde a de
l'enfance qui résonne,
Au fond d'une heure oubliée,
Il faudrait que
tout le monde réclame auprès des autorités,
Une loi contre toute notre solitude,
Que personne ne soit oubliée,
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