Domi Horatii. Reflexões acerca do estudo do Latim e da participação no Certamen Horatianum.

por João Veloso (aluno do 11ºF da EBSRF)

Participação no Certamen Horatianum 2014, em Venosa, Itália

Escolher latim foi uma das decisões mais acertadas que já tomei. No final do nono ano, embora já tivesse uma vaga ideia do que queria fazer, não sabia bem que curso seguir no secundário. Cheguei a fazer testes vocacionais mas estes não adiantaram de muito, uma vez que obtive as mais diferentes possíveis carreiras como resultado: biólogo, técnico informático, maestro, curador de museus... Sempre gostei das Humanidades – não que goste menos de Ciências ou de outra área qualquer, apenas acho que encaixam melhor comigo, com a minha personalidade (por ambos os meus pais serem dessa área, talvez). Por isso mesmo, por gostar de línguas e literatura, por gostar de História e, sobretudo, por querer vir a ser arqueólogo, achei que a melhor disciplina a escolher seria Latim A.

Encontrar uma turma de Latim não foi fácil; Encontrar uma escola que ensinasse Latim não foi fácil. Foi por mero acaso que li um artigo num jornal acerca da vitória do António Gil Cucu, aluno desta escola, no Certamen Horatianum em Itália. Nessa altura não fazia ideia de que, dois anos mais tarde, partiria eu para Venosa. Falei com os meus pais e decidi, então, mudar-me da Maia para a Escola Básica e Secundária Rodrigues de Freitas. Como o Ministério da Educação só permitia a abertura de uma turma com pelo menos vinte alunos, tive a sensação de que voltaria para a Maia para ter Geografia ou MACS. Depois de muitas cartas escritas e muitos faxes enviados, a escola foi autorizada a abrir uma turma com dez alunos.

Felizmente os dez alunos apareceram e em setembro de 2012 estava eu a aprender as declinações com o professor Moranguinho e com colegas excelentes. Existe, porém, uma certa repulsa relativamente ao Latim: “é muito difícil” ou “não serve para nada”. Posso assegurar que, no ramo das Humanidades (e sobretudo nas outras línguas), o latim é tão essencial para compreender as outras matérias como a  Matemática o é para as Ciências. 

Aproveito também para tranquilizar possíveis alunos: o Latim não é difícil! Requer método, sim, e estudo regular, mas não é nada de mais. Não há casos particulares (à exceção de uma ou outra vez), e aprende-se a um ritmo relativamente lento. Volto à comparação com a Matemática: no primeiro ano, Matemática é extremamente fácil (4+4=8, simples, não é?) e vai ficando cada vez mais complexa à medida que aprofundamos o estudo. Passa-se exatamente o mesmo com o latim – os primeiros textos que se traduzem são, literalmente, “a rosa é bonita; a rapariga gosta da rosa [...]” mas no final do 11º ano, os alunos já são capazes de traduzir autores clássicos, como Cícero, Tito Lívio e Eutrópio.

A maior recompensa que obtive das aulas de Latim foi, obviamente, a possibilidade de participar no Certamen Horatianum. Esta prova consiste numa tradução e num comentário acerca de um excerto da obra do autor Quinto Horácio Flaco (65 a.C. - 8 a.C) e realiza-se todos os anos na cidade italiana de Venosa, pátria de Horácio. Para participar, recebi uma preparação especial do professor Moranguinho, tendo aulas extra fora do horário normal. Devo dizer que o estudo que fiz da poesia horaciana me marcou positivamente porque a forma simples como Horácio canta o Carpe Diem e a Áurea Mediania, apresentando traços de Epicurismo e Estoicismo, me fez contemplar a vida de maneira diferente. Dizem que os bons autores são aqueles que nos marcam e que ficam na nossa cabeça muito depois de fecharmos os livros, acho que Horácio é o meu autor favorito. A viagem em si, foi também muito importante: foi a primeira vez que fui a Itália e a primeira vez que viajei sem a minha família, portanto estava bastante entusiasmado. Passei quase uma semana em Itália, parando em Roma à ida e à vinda. O Império Romano do Ocidente caiu há exatamente 1538 anos mas ainda hoje percebemos porque é que Roma foi a cabeça do maior império que o Mundo Ocidental alguma vez viu. A cidade é verdadeiramente monumental: estive no Coliseu, que é muito maior do que é possível imaginar, e estive no monte Palatino, onde a paisagem é tremenda. O sítio que mais me impressionou foi a Cúria Romana, o único edifício do Fórum completamente preservado, por ter sido utilizado como igreja até à Idade Média. Olhar para as portas de bronze e pensar que lá dentro se decidiam os destinos dos povos bárbaros da Gália e da Hispânia e, sobretudo, lembrarmo-nos de que foi lá que foram proferidos os discursos que estudamos hoje é verdadeiramente comovente. O Fórum é, por isso mesmo um sítio muito curioso, onde paira uma atmosfera misteriosa e sublime.Já Venosa é um lugar completamente diferente. É uma cidade muito pequena mas muito acolhedora. Os participantes todos do concurso foram alojados num hotel e era ao jantar que convivíamos, sobretudo. A esmagadora maioria dos participantes eram italianos, como seria de esperar, oriundos de todo o país. Embora já fosse preparado, não deixei de estranhar as centenas de alunos que estudam latim em Itália, todos eles dos mais diferentes cursos: havia alunos de artes, humanidades e ciências, todos eles com pelo menos cinco anos de latim! Os estrangeiros, que realizaram uma prova diferente, eram nove: Dois alemães, um rapaz e uma rapariga, três rapazes e uma rapariga austríacos, duas alunas romenas (Cosmina e Gabriela, com quem ainda mantenho o contacto) e um português, eu. Os alemães e os austríacos eram um pouco antipáticos e falavam apenas entre si, evitando dar-se tanto com os italianos como com os outros estrangeiros. Assim que vi a competição fiquei um pouco intimidado (não só ambas as romenas tinham já quatro anos de latim, como a Gabriela tinha já sido premiada em dois concursos).

No dia da prova não estava nada nervoso, estranhamente, e só repetia para mim “andaste a preparar-te para isto durante meses, não vai sair nada que nunca tenhas visto.

”A  prova realizou-se na escola secundária (a que chamam “Liceo Clássico”) de Venosa e teve uma duração de seis horas. Ironicamente, a ode que me calhou foi a I.37, descrição do suicídio de Cleópatra após a sua derrota às mãos de Augusto na Batalha de Ácio, em 31 a.C., precisamente uma das poucas que eu e o professor  não vimos com muita atenção por o seu tema não ser muito habitual em Horácio. De qualquer maneira, dei o meu melhor e acho que fiz uma tradução sólida, acompanhada por um bom comentário. No dia da entrega dos prémios fiquei desiludido por não ter ganho nada, claro, mas não deixei que isso me afetasse – afinal de contas a minha competição tinha muito mais experiência que eu. A minha viagem, a preparação e os dois anos de Latim que tive foram muitíssimo importantes para mim. Enquanto estou a escrever este testemunho, ainda estou na incerteza de para o ano ser possível continuar a estudar Latim e quiçá começar a estudar Grego. Custa-me um bocado imaginar que no ano letivo 2014-2015 não vá haver nenhuma turma de Latim de 10º ano no Rodrigues de Freitas, uma escola com uma tradição tão importante. Se algum aluno de 9º ano estiver a ler estas palavras, aconselho-o a considerar a escolha desta disciplina – afinal de contas não há nada a perder, uma vez que ganham sempre bagagem cultural. Um dia, quando a Crise passar, hão de ser necessários Latinistas. Num país tão intimamente ligado a Roma e à sua cultura, seria simplesmente triste ter que os ir buscar ao Reino Unido ou à Alemanha. 

Termino citando um dos versos mais marcantes de Horácio, da nona ode do primeiro livro, Quid sit futurum cras fuge quaerere(...) - “Evita procurar saber o que tem que acontecer amanhã”, na esperança de motivar alunos a escolher aquilo de que verdadeiramente gostam ou em que verdadeiramente são bons, independentemente do resto.

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