Visita de antigos alunos do Liceu D. Manuel II
por Professor Doutor José Luís Medina (antigo aluno do Liceu D. Manuel II)
Ex.ª Senhora
Directora do Agrupamento de Escolas Rodrigues de Freitas:
Vimos desta
forma reiterar o nosso reconhecimento pela forma tão cordial e solícita como V.
Ex.ª se dignou receber a nossa turma dos antigos alunos do Liceu D. Manuel II,
que concluíram o ensino secundário no ano
de 1957 reconhecimento em que envolvemos as Exas professoras que se
desdobraram em atenções durante a visita guiada, a qual trouxe ao de cima “o
carinho comum por essa Escola”, tal como V.Exª bem referiu em resposta à nossa
pronta mensagem assinalando a grande dignidade de que se revestiu o evento.
E como nos foi
solicitado um retábulo sobre o nosso antigo Liceu, com vista à sua eventual
publicação no Jornal Escolar, vamos tentar sintetizar a nossa vivência durante
aqueles sete anos da década de 50.
Comecemos por referir que a nossa visita teve como objectivo revisitar as instalações onde durante cinco anos diariamente nos encontrávamos e relembrar muitos dos momentos mais agradáveis e também os menos bons que em conjunto aí vivemos.
Comecemos por referir que a nossa visita teve como objectivo revisitar as instalações onde durante cinco anos diariamente nos encontrávamos e relembrar muitos dos momentos mais agradáveis e também os menos bons que em conjunto aí vivemos.
Nessa época a
autoridade do Reitor constituía, então, um símbolo da disciplina que, em escala descendente envolvia também os
professores e contínuos.
Esta teia, não
impedia que se estabelecessem boas relações entre alunos e alguns contínuos, mormente
os responsáveis pelos laboratórios de Química e Ciências Naturais, por causa
dos trabalhos práticos.
Uma boa parte
dos nossos professores tinha a sua alcunha (que seria impossível desconhecerem),
sendo o Chefe dos contínuos o Sr. Moreira alcunhado de “Reizinho” embora
vestisse, como todos os outros, a farda, sem insígnias, azul ou cinzenta,
consoante a estação do ano.
Quanto aos
métodos de ensino e programas, tinham que ser cumpridos pois era a norma em
vigor em todo o país, não havendo hipóteses de contestação.
A chegada das
primeiras alunas, descidas lá do alto da Carolina Michaelis, que se recortava
no céu, longe de causarem qualquer tumulto, constituiu uma lufada de ar fresco
até por ser uma experiência pioneira a nível nacional porque se tratou apenas de cerca de duas dezenas de alunas, que
por carência de professoras na área, no Liceu Carolina, vieram completar uma
turma de letras do D. Manuel II.
A este propósito
registámos no jornal do Liceu, “O Mensageiro-Jornal Académico do Liceu D.
Manuel II” nº 11 de 4/12/53 ?, um depoimento
de uma aluna, referindo que “ os miúdos é que se mostram mais atrevidos”. Mas o
assédio não ia além de uns papéis enfiados à socapa nos guarda-chuvas das
alunas, deixados no pátio da entrada.
O apartheid
passava também por que as raparigas tinham um recreio à parte, no pátio central
com vigilância reforçada.
E o zelo dos
vigilantes das nossas hormonas era de tal sorte que um nosso colega, o Lima
Félix, num dia em que cumprimentou, de beijo na cara, uma sua irmã com quem se
cruzou, apanhou um tabefe do Reitor.
A adequação dos
programas ao tecido empresarial (com agora se diz) está bem no destaque com que
aparecem no Museu de zoologia aquele crocodilo e uma enorme minhoca de caco com
as tripas todas à mostra, ao lado um caracol gigantesco sobre o qual o
professor de Ciências Naturais, o Dr. Manuel Joaquim Lopes, dissertou sobre o
hermafroditismo do bicho.
Da colecção existente a Sr.ª responsável pelo Museu, marcou
bem que nem sequer era nascida quando por ali dissecávamos rãs com muito ou pouco pendor científico,
rematando com que a maior parte daqueles bichos seriam do nosso tempo (não no
conceito geológico, entenda-se).
Saíamos do Liceu
com excelente bagagem teórica, a ponto de, ainda hoje conseguirmos papaguear (de
memória, neste momento em que escrevemos) o sistema ambulacrário do
ouriço-do-mar, as placas madrepóricas, as ordens dos mamíferos, aves, repteis,
batráquios e peixes, os rios e serras de Portugal, os diferentes Países e
capitais, os anos das guerras mundiais etc, etc.
Na
cristalografia, passamos semanas a orientar aos modelos em madeira, nos
sistemas cúbico, hexagonal, tetragonal,
mono e triclínico e ortorrômbico que jamais
contemplamos na Natureza.
Tínhamos chatíssimas
aulas de canto coral e solfejo e saímos do Liceu, incapazes de ler uma pauta ou
distinguir uma nota do tamanho da roda dum carro de bois.
Em
contrapartida, distinguíamos os guinchos, das andorinhas, por terem, aqueles,
dois dedos para a frente, e outros tantos para trás (quem diria?).
Nos exames de
Matemática, apreciávamos mais a Trigonometria que a Álgebra e que a Aritmética
Racional que nunca alguém nos ensinou minimamente para que serve.
Empinávamos a Constituição da República que
não sabíamos bem para que servia.
Ainda assim,
havia espaço para algumas transgressões, como a de uma dupla useira e vezeira
que fez um golpe de mão à sala dos professores para arrancar a página do livro
de ponto donde constava uma falta de castigo aplicada a um colega.
A par disso
também houve alguns desaires que vêm sempre à baila nos nossos encontros, como
aquele da dupla do golpe de mão ao livro de ponto, e que se lembrou de misturar
numa proveta, todos os ingredientes que apanhou à mão no laboratório de Química,
até que começou a sair uma fumaceira castanha que levou a que a turma toda
tivesse que se refugiar no corredor.
E quando ali
aportou um professor de ginástica chutado de Évora por não andar a regular bem
da cabeça, ainda aguentámos vê-lo andar calado durante três aulas consecutivas,
de sobretudo, em pleno ginásio, mãos nos bolsos, às voltas na sala, sem
proferir uma palavra.
Fomos ganhando confiança e, à quarta, nestes
preparos, desatámos a jogar a bola, sem passar cartão ao mestre. Às tantas ele
parou, e sem dizer palavra, puxou de uma navalha do bolso e receámos o pior.
Limitou-se a esfrangalhar a bola e lá retomou o passeio, sempre de olhos no
chão. Nunca mais lhe pusemos a vista em cima.
Da conversa que
mantivemos numa sala de aulas foi abordada a falta de horizontes para os
formandos, uma pequena/grande diferença em relação à nossa geração, quando o simples
canudo do 7º ano nos abria muitas portas e garantia emprego.
Um bom indicador
da (boa) mudança do paradigma, é que seria inimaginável que o antigo Reitor,
António Guerreiro, se dignasse descer do seu pedestal para receber, à porta, um
grupo de nostálgicos sem qualquer peso formal, tal como acaba de fazer a solícita
Directora desse Agrupamento de Escolas, onde é patente a frescura e empatia que
reinam nas salas de aulas, onde tivemos o ensejo de entrar e constatar que o
actual Chefe da Turma, havia sido
nomeado por meritocracia.
Parafraseando
John Kennedy, a mensagem com que terminamos este bosquejo e que endereçamos aos
jovens inquilinos desta casa é a seguinte: não fiquem à espera de que o País
venha ao vosso encontro. Peguem, com ambas as mãos no que resta do País e, para
bem de todos, façam um País novo; Nós tentámos mas não conseguimos.
14
de novembro de 2014
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