1871, Rodrigues de Freitas encontra o Liceu Nacional do Porto (ou vice-versa)

pelo Dr. Luís Grosso Correia (Professor | Investigador do Departamento de História e de Estudos Políticos e Internacionais (FLUP). CIIE - Centro de Investigação e Intervenção Educativas (FPCEUP)

Ilustração de Ana Catarina Silva (aluna do 6ºF da EBSRF)

A presente reflexão sobre a relação entre José Joaquim Rodrigues de Freitas e o liceu da cidade do Porto que, em 1910, o adotou como patrono, o então Liceu da 2ª circunscrição escolar do Porto, tem como arco temporal o ano de 1871 e o de 1932.
Numa cidade dominada pela avassaladora oferta privada de ensino secundário-liceal (por disciplinas avulsas ministradas em instituições privadas ou por professores independentes) e uma deprimida quantidade de alunos matriculados na única escola da rede oficial instalada na cidade do Porto, os professores do Liceu Nacional do Porto vão encetar um peculiar processo autónomo de reflexão, investigação e avaliação sobre o sentido da sua missão sócio-educativa e pedagógica a partir da década de 1860. Este processo de consolidação da identidade específica do Liceu no quadro do subsistema escolar pós-primário português inicia-se internamente com os trabalhos de comissões especializadas de avaliação dos manuais a adotar pelo Liceu (as atas do Conselho Escolar deste período são férteis em relatórios de avaliação muito criteriosos e minuciosos), continuará num nível de complexidade reflexiva superior em 1869, a partir do repto lançado aos liceus pelo Decreto de 31 de Dezembro de 1868, e atingirá um dos pontos de maior visibilidade pública em 1871.

Neste ano, o Conselho Escolar insurge-se contra as contradições das autoridades centrais em matérias de reforma do ensino liceal: o Decreto de 31 de Dezembro de 1868 fora suspenso pela Lei de 2 de Setembro de 1869 e uma nova reforma dos liceus surge pelo Decreto de 22 de Outubro de 1870 – os respetivos plano e regulamento foram publicados pelos Decretos de 18 e 25 de Novembro de 1870. O Conselho do Liceu Nacional do Porto produz uma análise exaustiva, crítica e contundente dos diplomas aprovados em 1870 (chegando o seu nível de análise às unidades curriculares), ao mesmo tempo que se insurgia contra a suspensão do diploma reformador de 1868. Os decretos de 1870 vieram gorar e defraudar os trabalhos e esforços que o Liceu tinha desenvolvido, ao longo de mais de um ano e meio, com várias sessões extraordinárias do Conselho Escolar realizadas à noite, com vista a contribuir, de forma informada, para a reforma do ensino secundário proposta pelo diploma de 1868. Os docentes do Conselho do Liceu abraçaram o pedido lançado pela Portaria de 19 de Outubro de 1869 e realizaram inúmeras consultas, estudos e reflexões, alguns, por exemplo, sobre a organização liceal da Alemanha e da França, comprovados pelas extensas actas do Conselho Escolar de 1869 a 1871. Os resultados deste esforço científico dos docentes do Liceu foram plasmados no Relatorio e bases para a reforma da Instrucção secundaria dos lyceus segundo o voto do Lyceu Nacional do Porto, publicado em 1869. Neste documento, o Liceu procede à fundamentação, ponto por ponto, do relatório que sustenta as propostas adotadas, apresenta as bases para a reforma sob o formato de diploma legal, com capítulos temáticos, artigos, pontos e parágrafos e remata com a identificação dos catorze professores e dos votos que declararam separados das propostas do relatório e dos artigos das Bases aprovados pelo Conselho (nove casos). Parece ter havido um grande consenso em torno dos princípios organizativos do documento, em virtude de as declarações de voto derrotado pronunciavam-se sobre distintas propostas e artigos contidas no documento.

Com o objetivo de fazer ouvir, junto da tutela, a sua opinião sobre o indesejado curso da organização escolar e pedagógica causadas pelos diplomas aprovados em 1870, o Conselho do Liceu remeteu o referido Relatório pelos mecanismos administrativos normais através do ofício de 24 de Janeiro de 1871 dirigido ao Ministério do Reino. A resposta das autoridades centrais foi dada num curto espaço de tempo mas não seguiu os mecanismos administrativos normais; foi dada através de uma Portaria datada de 28 de Janeiro de 1971 publicada em Diário do Governo. Medida infeliz na opinião de José Rodrigues de Freitas, representante republicano à Câmara dos Deputados, porque «não havia necessidade da publicação dela; a inserção no Diário parece manifestação do desejo de desconsiderar o Liceu do Porto» (cf. Alves, 1999: p. 71). Perante o meio e o modo da resposta, o Conselho do Liceu deliberou fazer uma Representação sobre a necessidade de uma lei geral de Instrucção Pública a propósito das reformas ultimamente decretadas na Instrucção Secundária dirigida á Camara dos Snrs, Deputados da Nação pelo Conselho do Lyceu Nacional do Porto em 8 de Março de 1871 (cf. 1871), a fim de dar igual visibilidade pública às suas opiniões de natureza pedagógica, organizacional e curricular. A Representação do Liceu defende a divisão dos estudos liceais em ordem a proporcionar o desenvolvimento harmonioso de todas as faculdades cognitivas (com a finalidade de formar a aristocracia científica), uma adequada organização dos horários letivos, a criteriosa organização dos conteúdos no interior de cada cadeira e a dignificação do ensino público, em geral, e do ensino secundário, em particular. A linguagem utilizada não era de deferência para com as autoridades educativas, bem pelo contrário – era cáustica, frontal e muito clara:



Pela primeira vez, depois d’esse Decreto [de 31 de Dezembro de 1868], entrou a palavra pedagogia a ter um sentido preciso, e cuidaram de lêr-se e traduzir-se livros sobre essa importantissima sciencia..[…]

Em instrucção secundaria reveleram aquelles estudos, que pouco melhor estavamos. Egual desprêsoda educação physica, como quem só deseja que o espirito se robusteça e desenvolva, deixando-o atrelado a um organismo doentio e fraco. Distribuição das materias d’ensino, que em vez de excitar a um tempo, mas em dóses convenientes todas as faculdades da alma, excita o desenvolvimento exagerado d’umas, á custa do atrophiamento d’outras, gerando entre ellas uma perniciosa desegualdade d’aptidões e forças. Pouco tempo emfim para se estudarem certas disciplinas, e muito, sobejo até, para se esquecerem. […]

É bem possível que estas difficuldades desapparecessem n’estes Lyceus, pelo modo simples e facil como podiam desapparecer no do Porto. Mas o silencio d’estes corpos docentes póde significar outra coisa mais séria ainda; - é o profundo convencimento de que baldados são quantos  esforços se façam n’esta nossa terra para aperfeiçoar as instituições sociaes e as leis; que vãs são todas as tentativas de melhoramentos racionaes e fundados na experiencia; que inutil é luctar contra o mau fado que persegue a instrucção publica do paiz; pois que superior a todos os esforços, a todos os trabalhos, a todas as reclamações está a vontade poderosa dos que presidem a este ramo da publica administração; que decretam, reformam, legislam, modificam, alteram, destroem e esterilisam tudo o que tocam, deixando nas paginass do Diario official os documentos mais eloquentes da sua ignorancia, precipitação ou leviandade! […]

É tempo de voltar á idéa capital d’esta representação. Decretos, Portarias explicativas, Regulamentos, e Programmas é tudo do mesmo valor, –  reformas a retalho, pelas quaes a nossa instrucção tem ido de mal a peor. […] Acudam ao desmoronamento do nosso ensino publico; e por uma lei geral, tantas vezes promettida, quantas esquecida, firmem em novas bases este carcomido edificio; lembrando-se que, sem boa, sólida, verdadeira, e geral instrucção, nenhum povo se póde levantar e sacudir a mortalha, em que o sepultam os desvarios, e as leviandades d’estes reformadores tacanhos».



O documento foi assinado por todos os professores do Conselho do Liceu.

Na Câmara dos Deputados surgirá uma única voz a defender a Representação do Liceu: o deputado republicano José Rodrigues de Freitas, portuense de nascimento, deputado eleito pelo círculo de Valença, em 1870. Afirmou Rodrigues de Freitas, na sessão de 15 de Março de 1871, que “a linguagem da representação é enérgica, e poder-se-á dizer que uma ou outra frase é sumamente vigorosa; convém portanto saber desde já quais os motivos que levaram o Liceu a falar assim” (apud Alves, 1999, 70). Na sua intervenção, faz o historial das relações entre o Liceu e o ministério da tutela em todo o processo, elenca as dificuldades pedagógicas e os inconvenientes para a carreira dos alunos do Liceu por causa da aplicação das medidas de 1870 e remata dizendo que «um liceu que expõe dúvidas ao Governo não fala simplesmente como sendo composto de indivíduos que exerce o professorado; fala também em nome de direitos dos alunos que frequentam esse liceu, direitos respeitáveis, e que devem ser atendidos em vez de expostos aos decretos da leviandade» (idem, 72). Apesar de Rodrigues de Freitas ter explicitamente abordado esta polémica na Câmara de Deputados, os demais deputados não adotaram qualquer posição nem se pronunciaram sobre o assunto, não se tendo registado qualquer iniciativa legislativa (cf. Adão, 2001, 41). O Conselho do Liceu, em reconhecimento pelas diligências e esforços envidados por Rodrigues de Freitas, dirigir-lhe-á um voto de agradecimento, aprovado por unanimidade na Sessão de 31 de Março de 1871.

A Representação do Conselho do Liceu foi posta a circular em letra de forma, sob o formato de brochura, ainda durante o ano de 1871. A resposta solicitada pelas Cortes à Junta Consultiva de Instrução Pública foi publicada, novamente, sob o formato de Portaria, datada de 1 de Maio de 1871, no Diário do Governo e também sob o formato de brochura (cf. Parecer da Junta Consultiva de Instrucção Publica approvado por Portaria do Ministerio do Reino de 1 de Maio de 1871 á cerca da representação que dirigiu ás Cortes o Lyceu nacional do Porto, 1871), publicada pela Imprensa Nacional também nesse mesmo ano de 1871.

A tréplica dos subscritores da Representação foi decidida a 1 de Junho de 1871 pelo Conselho do Liceu e também posta circular sob o formato de brochura intitulada Analyse do Parecer da Junta Consultva d’Instrucção Publica sobre a representação do Conselho do lyceu nacional do Porto pedindo á Côrtes a reforma geral da instrução publica (1871) editada no mesmo ano de 1871

Todo este processo em que o Liceu se envolveu com a tutela educativa denota, em nossa opinião, uma atitude de coragem e de orgulho profissional exibida pelo Liceu, numa conjuntura dominada pelo silêncio e pela vergonha geral dos liceus, mercê da imposição de uma nova reforma em 1870 pelas autoridades centrais, quando a de 1868 ainda estava em fase de consulta pública. Os acontecimentos acima apresentados – a publicação da Representação e a tréplica analítica ao Parecer da Junta Consultiva, é um dos momentos maiores da história do Liceu e uma prova eloquente do seu thymos, ou seja, do “processo dinâmico pelo qual um conjunto de professores procura na fase de instalação e afirmação institucional da escola […] construir uma ideia e uma identidade da escola, recorrendo a processos racionais, afectivos e comportamentais, que são mais fundamentais do que estratégicos, dentro da observância do quadro jurídico-legal estabelecido” (Correia, 2000, 85), em defesa dos interesses dos alunos e inteligíveis à luz da conjuntura político-educativa. Estes atos, de índole volitiva, racional, afetiva e comportamental, de afirmação do brio profissional dos professores do Conselho do Liceu do Porto, no fundo, o que definimos por thymos, traduzirá, a um tempo, um estádio de maturidade identitária a que o Liceu tinha alcançado na década de 1860 e um estatuto de independência do Liceu face aos poderes centrais, apesar disso lhe ter custada a demissão do reitor José Pereira da Costa Cardoso, um dos subscritores dos documentos produzidos. Este thymos inscrever-se-á no habitus de independência, solidariedade entre colega e observância de princípios éticos e deontológicos que caracterizaram o Liceu no período analisado.

Determinado pelo Executivo saído da Revolução de 1910 e aprovado por aclamação na na sessão de 27 de Outubro de 1910 do respetivo Conselho Escolar, “numa justíssima homenagem áquelle nobre cidadão, verdadeira glória d’esta terra”, Rodrigues de Freitas é designado patrono do Liceu. A víuva de Rodrigues de Freitas, D. Ana Luísa, agradeceu o ofício do reitor dando-lhe conta da deliberação (cf. ibidem: Sessão de 1 de Novembro de 1910). Nesta mesma sessão os professores do Conselho Escolar afirmam, por aclamação, a sua declaração adesão às instituições republicanas.

Apesar de algumas empreitadas ainda estarem em fase de execução, o Liceu muda-se para o edifício construído de raiz para albergar as suas instalações no ano letivo de 1932/1933. No frontão que encima o corpo do central da fachada central do edifício estava gravado, em alto-relevo, Liceu Rodrigues de Freitas…



Bibliografia Ativa

Adão, Áurea (2001), As políticas educativas nos debates parlamentares oitocentistas – o caso do ensino secundário liceal. Lisboa/Porto: Assembleia da República/Edições Afrontamento.

Alves, Jorge F. (1999), Rodrigues de Freitas: intervenções parlamentares (1879-1893). Lisboa/Porto: Assembleia da República/Edições Afrontamento.

Correia, Luís G. (2000), “O thymos segundo o Liceu Feminino do Porto: 1917-1927”, Revista da Faculdade de Letras – História, III série, vol. 1, Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, p. 83-100.

Idem (2002), Récita do Liceu Rodrigues de Freitas/D.Manuel II: 1932-1973. 3 vols., Porto: ed. autor (dissertação de doutoramento no ramo de conhecimento em História apresentada à Universidade do Porto).

Idem (2003), «Liceu Rodrigues de Freitas/D. Manuel II, no Porto» in António Nóvoa e Ana Teresa Santa-Clara (coord.), «Liceus de Portugal» – histórias, arquivos, memórias. Porto: Edições Asa, p. 658-685.


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