Encontros com o sagrado

por António de Montelongo

Há tempos, no Porto, ao sair da missa vespertina de um sábado húmido e frio de Dezembro dei, juntamente com a família, com um sem-abrigo deitado no chão à porta de uma instituição bancária. Irónico: dei … ao sair da missa … à porta de uma instituição bancária.
Muitas vezes me vêm à mente palavras que dizem serem de Cristo: “Tive fome e deste-me de comer, tive sede e deste-me de beber…”. E se nós, que frequentamos as práticas religiosas, que nos dizemos crentes, verdadeiramente acreditássemos nestas palavras, como seria a nossa vida? Enfim….
Não é muito difícil levar umas sandes, fruta e uma bebida, descer a rua e dá-la, mais ou menos apressadamente, ao Sem-Abrigo que pernoita à porta da C.G.D., na Praça Exército Libertador. Difícil é acreditar no sentido das palavras e ser na acção coerente com aquilo em que se diz acreditar.

Não, não é grande sacrifício ir, mesmo que diariamente, com algo ao encontro do Sem-Abrigo; sacrifício é ir semanalmente à missa e ouvir com insistência as mesmas conversas sobre Deus, assistir a rituais demasiado estilizados, repetitivos, rotineiros, que o Altíssimo só suporta por ser infinitamente compreensivo. Que outra oração colectiva aos humanos é possível, não sei, mas as que fazemos, duvido da sua natureza evangélica. Rituais afastados da “Partilha do Pão”, da “Comunhão dos Bens”. Rituais que apenas a quem os frequentam servem: dão-lhes algum equilíbrio nesta vida e alimentam o desejo, a que chamamos esperança, de alcançar outra melhor. A Deus, estes rituais não serão vãos e inúteis?
Bem perto da porta da Igreja, à hora da missa, o Sem-Abrigo já está encolhido no “seu” lugar sem o mínimo recolhimento, privacidade, conforto ou aconchego; apesar disso, todos nós que comungámos, passamos junto dele com algum desprezo ou indiferença. Tranquiliza-nos no íntimo o já termos dado a nossa esmolinha para os encargos da Igreja. O Sem-Abrigo? – Ah! há tantos dispersos por essa cidade, este é apenas mais um. Este é apenas mais um. E todas as semanas o pobre ser permanece no local gélido, húmido e desconfortável e milhares e milhares de pessoas junto a ele – a pé ou de carro - transitam.
Alguns cães abandonados têm melhor sorte que o Sem-Abrigo, vítima de complicações que provavelmente nunca originou, de injustiças que o transcendem, de incapacidades estruturais que o limitam. Tem uma vida de cão abandonado pelo dono e desprezado por todos.
É complicado falarmos e ouvirmos falar de Deus, de dizermos e escrevermos que somos todos filhos do mesmo Pai e irmãos em Cristo. Ora, ou isso não é verdade ou então que irmãos porcos e esfarrapados, que miseráveis irmãos nos deram que apenas nos envergonham! Eis a expressão da nossa conduta.
Complicado é termos o que dizemos sagrado ou os seus símbolos tão perto do que verdadeiramente o é à face da Terra. O sagrado em situação de profanação: pessoas, vidas! … À saída da missa…, à porta de uma instituição bancária!...

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